Anderson Barbosa promove reflexão com o premiado projeto ‘Que vem das Ruas’

Graduado pela Universidade Tiradentes, o jornalista Anderson Barbosa criou, em 2016, o “Que Vem das Ruas”, uma iniciativa que dá voz e visibilidade às pessoas em situação de rua. O projeto retrata histórias de vida, iniciativas comunitárias e ações que promovem justiça social, cidadania e direitos humanos.
Neste ano, o trabalho foi reconhecido nacionalmente ao conquistar o primeiro lugar na categoria Práticas Humanísticas da 14ª edição do Prêmio Patrícia Acioli de Direitos Humanos, promovido pela Associação de Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj).
Em entrevista ao Sergipe em Foco, Anderson Barbosa fala sobre a inquietação profissional que deu origem ao projeto, faz um balanço da trajetória até aqui e apresenta uma análise sobre o cenário nacional e estadual em relação às políticas públicas com esse foco e à atenção à população em situação de rua.
O trabalho desenvolvido pelo jornalista pode ser conferido na internet por meio do site www.quevemdasruas.com, do Instagram @quevemdasruas e do canal YouTube.com/QueVemdasRuas, que deu origem a tudo.
Confira a entrevista completa:
Sergipe em Foco: A população em situação de rua é historicamente marginalizada, mas o projeto “Que Vem das Ruas” tem provocado uma discussão importante sobre a forma de como tratamos essas pessoas. Além de dar visibilidade a essa realidade, o que o senhor busca alcançar com esse trabalho? Como surgiu a ideia de desenvolver o projeto?
Anderson Barbosa: O projeto Que Vem das Ruas começou em 2016, fruto de uma inquietação profissional. Nessa época, estava afastado da reportagem e fazia produção para o entretenimento na emissora de TV em que trabalho. Para mim, ficar longe da reportagem era muito doloroso e, por isso, decidi criar um canal na internet para conversar com as pessoas. Naquele momento, ainda não tinha a definição de como seria, até o dia em que comecei a observar as pessoas em situação de rua. Lembrei que pouco apareciam na mídia e, quando estavam em evidência, eram alvo de preconceito, aporofobia e criminalização. Isso também me incomodava e decidi usar meu jornalismo como militância. Busquei saber quem eram, os motivos de estarem naquela situação, os sonhos... Com um celular, fui gravando as histórias delas, nas minhas horas vagas, para chegar a algumas respostas.
O objetivo do projeto é dar visibilidade a essas pessoas, para que a sociedade, por meio delas, troque o olhar de julgamento pelo sentimento de empatia e acolhimento. Também busca despertar na imprensa essa mesma curiosidade e sensibilidade, para entender que a situação de rua não é empecilho para participar das discussões na sociedade. Afinal, elas votam, contribuem com a economia e também são cidadãs. Acredito também que, a partir dessa escuta, elas podem ajudar os gestores a entender suas demandas, provocando a criação de políticas públicas e a aplicação das existentes. Porque uma coisa é fazer uma ação de governo, que nem sempre tem continuidade; outra coisa é política pública, com orçamento e verba específica.
SF: Enquanto jornalista, o senhor também reflete sobre a maneira como a imprensa aborda essa pauta. O que precisa mudar nesse aspecto? O jornalismo pode contribuir para transformar a forma como a população de rua é vista em nossa sociedade?
AB: A essência do jornalismo é social. O comunicador, o jornalista, precisa se despir de toda e qualquer forma de preconceito e entender que até mesmo as pessoas em situação de rua devem participar das discussões. Elas votam, contribuem com a economia do seu estado e da sua cidade, seja comprando água, um cigarro, uma bebida ou algum alimento para a sobrevivência. O jornalismo, da mesma forma que abre espaço para outras pessoas, precisa incluir os mais vulneráveis na discussão. Não precisa ser apenas nos temas de inclusão e pobreza, mas também nas pautas de economia, sociedade, política e esporte. Afinal, elas são pessoas assim como você e eu, com falhas e acertos.
Através de um jornalismo mais plural, é possível reeducar a sociedade para um novo normal, onde todos sejam respeitados de forma justa, respeitando suas particularidades. Quanto mais a gente fala, mais enfrentamos os medos e passamos a entender que qualquer pessoa pode, um dia, estar do lado de lá. E, às vezes, só é preciso uma oportunidade. O jornalismo profissional tem esse papel de ser formador de opinião.
SF: Pessoas em situação de rua são vítimas frequentes de violência, muitas vezes agredidas ou mortas por aqueles que deveriam garantir a segurança de toda a população. Na sua opinião, o que pode ser feito para evitar esses casos? Falta preparo por parte das forças policiais?
AB: Em 2025, a população em situação de rua de Sergipe foi vítima de vários casos de violência das forças de segurança. No dia 23 de outubro, fez três meses da morte de Maghave, um homem em situação de rua e esquizofrênico, assassinado por um PM. Há poucos dias, outra pessoa em situação de rua, com problemas mentais, foi assassinada pela Guarda Municipal de Lagarto. Os dois casos estão silenciados, ninguém sabe o que aconteceu. As pessoas em situação de rua não precisam de mais violência, já bastam as históricas. Elas precisam de ações que as enxerguem como vítimas desse sistema excludente e punitivo simplesmente por serem pobres. Precisam de cuidados com a saúde mental, para evitar o uso de álcool e outras drogas; necessitam da assistência social para que a falta de comida não leve à prática de delitos; também precisam de trabalho e da segurança de uma moradia. Sem isso, será difícil garantir dignidade.
Acredito que as forças de segurança precisam, sim, de mais capacitação para entender que a vulnerabilidade social só pode ser combatida com políticas públicas, não com mais violência. A preparação deles deve envolver noções práticas de direitos humanos, noções de saúde para diferenciar uma pessoa criminosa de um cidadão com problemas mentais e, antes de tudo, empatia. Nem tudo está perdido. Tenho visto bons exemplos de policiais e guardas municipais, em Aracaju, fazendo a diferença. A violência só gera violência; o cuidado gera bons frutos. Além disso, esses agentes também precisam de apoio psicológico e cargas de trabalho menos puxadas. Profissionais estressados, sem equipamentos de apoio adequados, também não ajudam na busca por uma verdadeira segurança pública. Os gestores precisam ser cobrados para buscar esse equilíbrio nas ruas.
SF: Do ponto de vista das políticas públicas, atualmente, quais são as principais legislações e iniciativas voltadas à população em situação de rua no Brasil?
AB: O Decreto Federal nº 7.053, de 2009, instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e a criação do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento dessa política. Junto com a Constituição, ele é a base para todas as outras políticas e decisões que buscam ofertar trabalho, moradia, acesso à documentação, atendimento em unidades de saúde e tantas outras necessidades. O decreto também impulsionou a discussão do projeto de lei do Estatuto, atualmente parado no Congresso, que, se aprovado, fará toda a diferença para essa gente cansada de tantos abusos.
Em Aracaju, temos apenas uma lei que comemora o Dia Municipal, sem puxar a responsabilidade do poder público. Na Assembleia, há mais uma ligada ao decreto federal. Se pelo menos as leis, decretos e normas existentes fossem cumpridos, o cenário poderia estar bem melhor. Como fazer política pública se essas pessoas nem são incluídas na contagem do IBGE? Seria muito importante que os gestores entendessem que essas pessoas não querem favores; precisam apenas do cumprimento dos seus direitos.
SF: Trazendo a discussão para Sergipe, existe alguma ação em andamento com esse foco? Como o senhor avalia a atuação do poder público nesse campo?
AB: Na Câmara Municipal de Aracaju, vejo uma importante movimentação da vereadora Sônia Meire para a aprovação de leis voltadas a essas pessoas. O problema é que a Casa precisa discutir, aprimorar as sugestões e votar. Mas quem está interessado?
Infelizmente, as atividades de higienismo são mais comuns na cidade. O povo das ruas é visto como problema e não tem direito a um banho, a um bebedouro, a um banco para passar a noite, e nem sempre pode trabalhar para conseguir o mínimo para sobreviver. Algumas ações mais parecem atentados contra a pessoa em situação de rua, jogando-as diariamente contra a outra ponta da sociedade.
Felizmente, existem grupos sociais, como a Pastoral do Povo da Rua, que têm feito um trabalho fantástico de escuta, levando alimento e roupas. Aracaju tem o Consultório na Rua, que atende essas pessoas, mas até pouco tempo elas estavam sem receber a vacinação contra a gripe. São apenas 90 vagas municipais para um total de 623 pessoas que, no ano passado, dormiam nas ruas da capital. No Estado, a Casa de Passagem oferta um número inferior a 50 vagas. A conta não fecha, e as pessoas estão morrendo, seja de fome, seja de violência física.
O Centro POP funciona de segunda a sexta-feira, em horário comercial, mas o problema dessas pessoas é 24 horas. A cidade está cheia de pessoas com problemas mentais e tenho a impressão de que nada, ou quase nada, se faz. E o pior: quando elas surtam, o que deveria ser um caso de saúde vira caso de polícia. No interior do Estado, as ações também são poucas.
SF: Recentemente, o “Que Vem das Ruas” lhe rendeu o primeiro lugar na categoria Práticas Humanísticas da 14ª edição do Prêmio Patrícia Acioli de Direitos Humanos, promovido pela Associação de Magistrados do Estado do Rio de Janeiro. Esse reconhecimento também tem repercussão aqui no Estado? Como o senhor avalia a recepção dos sergipanos ao debate levantado pelo projeto?
AB: O prêmio foi uma vitória da população em situação de rua. Ele não existiria se elas não colaborassem, contando as histórias e sugerindo os temas a serem abordados. Em quase dez anos do Que Vem das Ruas, sinto apoio dos colegas de imprensa, que enviam sugestões de pauta, fazem críticas e até enviam ideias. A sociedade em geral é muito receptiva e sensível ao debate. Muitas vezes, as pessoas são bombardeadas por uma série de fake news envolvendo as pessoas em situação de rua, e, quando têm acesso ao material do projeto, mudam a percepção. É uma questão de aproximação que muda a forma de cuidar.
SF: Há alguma forma de contribuir com a atuação do “Que Vem das Ruas”? Se sim, como a sociedade pode auxiliar nas atividades do projeto?
AB: Até agora, o meu foco foi mesmo a educação midiática e da sociedade por meio do conteúdo. A falta de padrinhos é um empecilho para colocar em prática ações mais diretas com a população em situação de rua. É isso que, em 2026, quero buscar, tudo sem envolvimento partidário. Enquanto isso, as pessoas podem contribuir com sugestões, críticas e, principalmente, tendo um olhar sensível para com as pessoas que se encontram nessa situação. Essa, sem dúvida, é a maior contribuição.
SF: O que o senhor ainda deseja para o projeto? Qual seria a sua maior realização?
AB: O Que Vem das Ruas sempre foi feito nas horas vagas, com doses de amor e pouco dinheiro. Ano que vem pretendo repaginar a atuação, ampliando o trabalho para além do papel do jornalismo e levando pão, água e outras necessidades a esse grupo. Espero contar com o apoio de todos, inclusive com voluntários. Também quero publicar as histórias dessas pessoas em um livro para marcar os 10 anos do projeto, o material já existe, mas falta o recurso financeiro. A minha maior realização será quando o projeto conseguir caminhar com as próprias pernas, para não ficar apenas na conversa. A minha maior realização será a transformação do Que Vem das Ruas em um instrumento de formação para profissionais da comunicação e áreas afins.
Da redação do Sergipe em Foco















